Discurso do Prof. Carlos Ribeiro nos 70 anos da SPC – Lidar com o Coração

«Agradeço ao Presidente da SPC, Prof. Vitor Gil, o ter decidido comemorar condignamente os 70 anos da Instituição.

Podemos dizer que a SPC atingiu a idade da Reforma ou da Aposentação. Todavia, prefiro chamar-lhe acto de Jubilação, como soe dizer-se entre os universitários, por ser com alegria e júbilo que vivemos este momento.

Chamo a atenção para o facto das Instituições Associativas apresentarem geralmente um percurso idêntico, embora os seus objectivos possam ser diferentes, como é o caso das Académicas, das Universitárias, das Profissionais, das Culturais, das Recreativas, das Desportivas ou das Sociais.

Em todas elas podemos identificar no seu trajecto três estádios, mal balizados embora, mas surpreendentemente semelhantes.

– O 1º estádio é da responsabilidade dos Fundadores, que actuam de forma coesa e solidária para a implantação e desenvolvimento dum projecto comum, consagrado nos Estatutos, que todos aprovaram. A colaboração entusiástica da totalidade dos associados justifica o êxito inicial da Instituição.

– O 2º estádio surge, quando a geração dos Pioneiros se retira e se apresentam diversos jovens criativos, contestatários, ambiciosos, dispostos a ocuparem os lugares deixados vagos pelos anteriores dirigentes da Instituição. Surgem então várias propostas, contendo novos objectivos e diferentes metodologias de trabalho, prometendo o progresso da Instituição, que tenderá a sectorizar-se, a desmembrar-se e a perder consequentemente coesão, salvo se aparecer Alguém com uma proposta apelativa, que se tiver êxito, fará nascer um Salvador institucional, que irá sobrepor os seus interesses aos da Sociedade, que será tanto mais esquecida, quanto mais admirado for o dirigente.

– O 3º estádio corresponde ao desaparecimento do Dominador ou Mecenas da Sociedade e à provável impossibilidade da sua substituição. Entregue ao comum dos mortais assistir-se-á, então, ao desaparecimento paulatino ou súbito da Instituição.

Na verdade, a evolução temporal descrita, pode ser  observada nas Instituições Religiosas, nos Partidos Políticos, nas Agremiações Desportivas, Recreativas ou Culturais, mas também nas Academias, Universidades ou Sociedades Científicas.

Todavia, tal projecto não tem sido registado na SPC.

Lembro-vos que a singularidade do Cardiologista reside em lidar com o CORAÇÃO, e, fazer dele o objectivo da sua prática diária e do seu projecto de vida, o que justifica, que esse órgão seja eleito como modelo da actuação desses profissionais.

Na verdade,

  1. O coração é um órgão com individualidade própria, fiel à sua matriz, não permitindo mutações genéticas, mantendo na sua evolução o mesmo cariotipo e semelhante estatuto citogenético, raramente sendo atingido pelo cancro ou por circunstâncias desviantes, tal como aconteceu com as sucessivas  Direcções da SPC no cumprimento dos seus mandatos.
  2. O coração é um trabalhador incansável, sem direito a férias, ao pagamento de horas extraordinárias ou ao subsídio de Natal. O Tribunal do Trabalho deveria com celeridade intervir, antes que o meu se recuse a funcionar, pois que até agora já produziu mais de 4 mil milhões de sístoles, com uma remuneração abaixo do ordenado mínimo.
  3. O coração, além disso, é um órgão  solidário com os restantes componentes do nosso corpo, fornecendo-lhes sem interrupção a energia que consomem no cumprimento dos seus objectivos. Tem à sua disposição 4 litros de sangue por minuto, que entrega pontualmente aos outros, ficando apenas com uma pequena quantidade para a manutenção do seu metabolismo. Se  fosse banqueiro, governante, gestor ou político era confiável, por ser uma “avis rara” nessas áreas profissionais.
  4. Louve-se também o caso de ser um órgão parcimonioso, sem o pecado da gula, com um projecto de vida diferente do tio Patinhas, pois que quando em repouso, por  cautela pede menos sangue às suas coronárias. É frugal, consome o indispensável na realização do seu trabalho.
  5. A dor anginosa é um protesto vindo dum sindicalista sério, que só protesta quando o exploram, e, se cala, quando acaba a exploração. Belo exemplo para certos sindicalistas do nosso mundo de trabalho.
  6. Quando por fim, cansado, claudica, e entra em insuficiência cardíaca, então, como órgão responsável, aumenta até à exaustão a sua capacidade de trabalho, pois não há geralmente insuficiência cardíaca sem taquicardia, que representa sempre um esforço adicional. Ao contrário, os outros Órgãos, menos solidários e responsáveis, passam a minimizar a sua actividade e surgem até protestos, nomeadamente dos pulmões. A dispneia não é mais que um grito contra a situação deplorável e miserável a que chegou a vida pulmonar. O coração, que sofre, mantem-se em silêncio.
  7. Quando o coração se assusta ou se cansa podem surgir alterações de ritmo, sentidas nas palpitações, que as extra-sístoles induzem. Tais situações levam muitas vezes à intervenção, geralmente desnecessária, dos cardiologistas. Todavia presidentes, treinadores e jornalistas desportivos apresentam discursos pejados de extra-sístoles, por vezes verdadeiros surtos de fibrilhação de disparates e não há cardiologista com capacidade para os travar  neste caminho, que os conduz sistematicamente à asneira.
  8. Existe hoje uma preocupação com o nódulo sinusal, propriedade dos ingleses Arthur Keith e Martin William Flack, de tal modo que é chamado nódulo de Keith-Flack. A saída de Inglaterra da União pode ter como consequência, que estes senhores possam levar consigo a «pilha», que é crucial para a vida do coração. Já o nódulo aurículo-ventricular, propriedade de Aschoff (alemão) e de Tawara (japonês) não corre esse risco. Todavia, se o nosso Ministro, Presidente do Euro-Grupo das Finanças, achar que pode intervir nesta verdadeira alfândega entre as aurículas e os ventrículos, temo que passe a cobrar uma taxa por cada estímulo eléctrico que passe.
  9. Também, quando sujeito a um acidente, de que resulte uma paragem cardíaca, a situação é resolvida através de uma metodologia pedagógica antiga – ressuscita com dois ou três socos bem aplicados. Como se vê, o coração não aderiu às modernas técnicas pedagógicas, baseadas na persuasão.
  10.  Por fim, chamo a atenção para o facto de não ser um órgão elitista, sexista, racista ou corporativo, disposto apenas a trabalhar com os seus pares. Na verdade quando transplantado responde adequadamente no terreno para o qual foi enviado, local designado por critérios exclusivamente científicos, e não de outro teor. É neste contexto um imigrante com uma notável capacidade de integração e sempre disposto a dar o seu melhor para o êxito e progresso do país de acolhimento.
  11. Creio que a SPC tem um trajecto vivencial diferente das outras Instituições, por os seus Membros elegerem o Coração como seu modelo social. Na verdade, só os Cardiologistas conhecem e valorizam o Coração como exemplo social e trabalhador incansável, dado que a restante população acredita que o Coração é a sede do sentimento, do amor, da saudade, como os poetas defendem e cantam.

Para nós Cardiologistas o Coração não é um órgão lamecha ou piegas, mas um protagonista viril, dedicado, solidário, confiável, apelativo, sério, responsável e honesto. Por isso o elegemos como nosso modelo institucional, copiando a sua forma de estar, como quando defende a sua identidade citogenética, sem permitir mutações no seu ADN.

Com esse exemplo em mente, cabe aos Cardiologistas a defesa da identidade da SPC, cumprindo e divulgando os seus Estatutos, embora disponíveis para os adequar às circunstâncias do momento que passa. Como diria Ortega y Gasset: “Eu, sou eu e as minhas circunstâncias”, postulado também válido para as Instituições, forma de estar que permitirá que possamos não temer o progresso tecnológico, os modernos modelos de comunicação, a robótica, a inteligência artificial, as viagens interplanetárias. Estaremos, até, quem sabe, num futuro próximo,  disponíveis para implantar, uma sucursal da SPC em Marte.

A SPC unindo o rigor à ousadia esteve sempre na linha da frente, dum mundo em constante mudança. Fieis a este passado, temos a garantia, que  as Direcções vindouras saberão continuar de forma responsável o trajecto sempre ascensional da SPC.

Mas, se alguma Direcção no futuro por anomia, descrença ou incapacidade, parar, tenho a certeza que haverá sempre um Associado disponível para aplicar 2 ou 3 murros, susceptíveis de ressuscitarem esses Directores.

Termino, dizendo perdoar aos Poetas o mal que fazem à Cardiologia, pelo bem, que ao longo da minha vida, me concederam.

Com a devida vénia oefereço-vos estes versos retirados dum soneto  de Camões, que julgo condensarem algumas das nossas actuais preocupações societárias:

«Continuamente vemos novidades,

diferentes em tudo da esperança,

do mal ficam as mágoas na lembrança,

e do bem (se algum houve) as saudades»

Verifiquei que dos  166 sonetos de Camões publicados, em 40 fala de olhos ou de lágrimas e em 23 refere-se ao coração directa ou indirectamente. Ignora, na quase totalidade, os restantes órgãos.

Se o seu interesse pela Oftalmologia é óbvio, dada a sua situação ocular, já a sua fixação na área Cardiológica resulta de um embuste, que prejudica de forma grosseira a Psiquiatria e aumenta o trabalho diário e a responsabilidade social dos Cardiologistas.»

Carlos Ribeiro

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